
Performatividade de gênero
Gênero e sexualidade são dois dos temas com os quais Judith Butler trabalha. Mais especificamente, em Problemas de Gênero (2003, Civilização Brasileira) a autora trabalha gênero como algo performativo. Se opondo às explicações necessariamente biológicas e construtivistas, a autora busca tratar o gênero como um processo que nunca de fato se completa, e mesmo quando ele se mostra o mais natural possível, o próprio status de naturalidade é resultado de práticas de repetições.
Neste sentido, deixamos de lados questões como a origem e a finalidade do gênero, pois ele acaba por tornar-se algo contingente. Ao mesmo tempo, não somos um gênero, mas, ao contrário, fazemos um gênero. Não sendo o gênero a manifestação de uma verdade essencial e inerente, ele acaba estando aberto à (re)interpretações e (re)inscrições no decorrer do tempo.
É importante notar que performatividade não quer dizer a mesma coisa que performance. Diferentemente de um espetáculo de teatro, em que atores e atrizes interpretam papéis escolhidos para si, a performatividade de gênero se caracterizaria tanto pela não existência da simples escolha de um gênero (como se se escolhesse uma roupa por dia) e um certo condicionamento de fatores como classe social e raça, deficiência, etc. Performatividade de gênero não é performance de gênero.
Precariedade, inteligibilidade e reconhecimento
Em um livro mais recente, Quadros de Guerra (2015, Civilização Brasileira), Butler está preocupada com o tema da precariedade, aqui entendida como uma característica compartilhada por todos os seres humanos no seu nascimento – todas as pessoas precisam de algum tipo de sustento até poderem cuidar de si mesmas –, mas que torna-se fundante da vida de algumas outras pessoas, no sentindo de que algumas vidas são precárias do começo ao fim.
Analisando conflitos de guerra, Butler escreve os textos que compõe esse livro em termos de vidas que são passíveis de luto, ou enlutáveis, e aquelas que não são. Assim sendo, ser enlutável é estar de acordo com um conjunto de normas que definiriam o que é ser humano, possibilitando que certas pessoas sejam lidas como tais.
Como em outros temas, o contrário da norma não está além dela, mas ao contrário, faz parte de sua constituição. Neste sentido, a possibilidade de poder ser lida como pessoa só existe na medida de sua impossibilidade. Em linhas gerais, existem vidas vivíveis e vidas não vivíveis, sendo que esta definição é dada em termos de fazer sentido no mundo.
Às normas que definem o humano e, consequentemente, o não-humano, Butler dá o nome de esquemas de inteligibilidade. Tais esquemas precedem a possibilidade de ser reconhecido como uma pessoa, uma vez que eles acabam por estabelecer condições de reconhecimento. Condições que, por sua vez, não são acessadas por todas as pessoas.
Gênero como um enquadramento
A performatividade de gênero não é independente, então, das normas que regulamentam a inteligibilidade social. Ao contrário, tais normas se (re)produzem através de atos performativos, ou atos corporificados, uma vez que tais atos fazem referência à uma norma que rege os limites daquilo que pode ser entendido como uma vida. Em outras palavras, ser vida é ser lido como tal.
Ao meu ver, Butler possibilita um entendimento de gênero que não se limita às questões relacionadas à identidade. Em Undoing Gender (2004, Routledge), preocupada com questões referente às pessoas intersexuais e trans*, Butler está tratando gênero em termos de pessoas que acessam, e aquelas que não acessam, as condições básicas de reconhecimento, ou, posto diferentemente, pessoas que passam, e outras que não, por processos de precarização, uma vez que não obtém sucesso em seus processos de “citação” da norma.
Sendo assim, podemos perceber que gênero não é necessariamente um aspecto das identidades de sujeitos. Ao contrário, Butler parece usá-lo como um enquadramento a partir do qual conseguimos perceber como algumas vidas são menos vidas que outras, ou que, de fato, nunca chegaram a ser vidas, pois estas falham em se adequar aos esquemas de inteligibilidade.